12 de abr. de 2010

As palavras que nunca são ditas

“Joana não sabia se achava graça, se deixava ‘passar batido’, ou se abria o envelope que carregava sempre na sua bolsa. A terceira opção certamente era a mais perigosa, já que abrir o envelope significava deixar a memória de Breno substituir todos seus pensamentos. Fazia dias, talvez semanas, que ela nem lembrava que o envelope estava lá – branco, quase indistinto de tantos outros, não fosse pela caligrafia nervosa que, sobre o lado sem emendas havia escrito: ‘As palavras que nunca são ditas’.

Mas agora a presença dele em meio ao pequeno inventário que Joana carregava sempre a tiracolo era tão óbvia que o envelope parecia vibrar como um celular poderoso. E tudo isso porque, ao procurar no próprio telefone um ‘torpedo’ com um endereço de um dermatologista que uma amiga (também chamada Joana, só que com ‘u’) a havia enviado no final do ano passado, descobriu que não havia apagado todas as mensagens que ele havia mandado.

No início de abril, em mais uma tentativa de esquecer o cara que tinha mudado sua vida, Joana fez o impensável: deletou tudo que ele havia escrito para ela – tudo! Dos primeiros recados em código – já que nenhum dos dois sabia onde estava pisando – ao último recado onde ele inquestionavelmente pedia para ficar sozinho. Simples declarações de amor, profundos questionamentos sobre os sentidos da paixão, passagens de livros que ambos gostavam (e achavam que haviam sido escritas para eles), pedidos na linha ‘não me abandone jamais’, breves lembretes de que um havia encontrado no outro a parceria da sua vida – tudo sumiu em menos de dez segundos, depois que ela respondeu ‘sim’ à pergunta direta na tela do seu celular: ‘apagar mensagens marcadas?’.

Mas ‘tudo’ não era exatamente ‘tudo’. Havia sobrado uma mensagem, que Joana não tinha certeza se a havia guardado de propósito ou se foi mero ato falho – uma modalidade de esporte masoquista na qual ela era campeã. Talvez o recado não houvesse sido descartado junto com os outros por mero acaso mesmo. Afinal, ela nem podia imaginar por quais motivos ela gostaria de reler, mesmo tanto tempo depois, uma bobagem como essa:

‘Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?! Eu te adoro meu amor, tenho tanta felicidade dentro de mim que parece que eu não vou aguentar! E assim como eu a vi hoje quando abri meus olhos, eu também não sei mais durmir sem você…’

O problema era que tinha sim alguns motivos para retornar sempre a essa mensagem. O primeiro deles, a referência à tarefa sempre insana de um constantemente tentar surpreender o outro com uma frase de amor original. A citação a ‘Quase sem querer’, do Legião, era uma brincadeira íntima, como se os versos cantados por Renato Russo fossem uma espécie de provocação constante que fizesse parte da intricada equação do amor que eles sentiam. Geralmente quando Joana achava que tinha sido original – por exemplo, usando fragmentos da decadente decoração da casa dele para falar dos seus sentimentos –, Breno vinha com algo ainda mais inesperado – como uma listagem das coisas que melhoraram a sua volta simplesmente porque ela havia feito dele uma pessoa melhor. E a competição – que eles adoravam frisar que ‘não era uma competição’ – ia em frente.

A referência a ‘não aguentar de tanta felicidade’ era outra constante na relação entre Joana e Breno – e outro motivo não declarado para ela querer guardar aquela mensagem. Mais de uma noite foi gasta tentando pensar em como eles administrariam tanto amor – uma grande ironia, quando o que os separou foi justamente a incompetência (de ambos) em lidar com algo tão avassalador.

E finalmente havia a grafia errada do verbo ‘dormir’ – um pequeno pecado ortográfico que ele assumia, mas admitia não saber a origem… Desde pequeno escrevia daquele jeito – com ‘u’ – e só se dava conta que havia feito isso quando relia um texto seu. Joana, claro, adorava que ele cometesse aquela pequena gafe (um inexplicável deslize em alguém que tinha o português tão impecável), e mais de uma vez forçou dele uma reposta por escrito que tivesse o verbo ‘durmir’ só para rir sozinha, cheia de carinho e saudade, quando estava longe do Breno.

Voltou a ponderar as três reações possíveis à ‘redescoberta’ da mensagem. Achar graça seria leviano demais – mesmo depois de mais um ano, nada naquela separação inspirava sequer um sorriso. Passar batido? Impossível. Cada vez que Breno cruzava seu pensamento era como se todo seu raciocínio fosse sequestrado – não tinha como ignorar, qualquer referência a ele que não merecesse uma resposta.

O que a levava à terceira opção: abrir o envelope na sua bolsa. Mas se fizesse isso, já sabia o que viria depois. Ali ela encontraria todas as cartas e todos os bilhetes que ele havia escrito para ela. Contraditório? Nem tanto. Uma coisa era apagar as mensagens do celular. Outra era jogar fora o registro da letra de Breno. Isso ela não tinha coragem de fazer. O que não significava que ele estava preparara para revisitar aquele material. Enfim, reler aquilo tudo significaria se perder mais uma vez em lembranças boas demais que a fariam sofrer tudo de novo.

Não. Era preciso pensar numa quarta opção. Mas não houve tempo para pensar. Quase como um reflexo, Joana apertou a tecla ‘responder’ no seu telefone e escreveu:

‘Breno, não se assuste. Nem pare de ler essa mensagem por aqui. Eu poderia começar de uma maneira bem convencional – ‘quanto tempo’… aquelas coisas. Mas é melhor dizer logo (afinal, isso é um SMS, não um email), se é que você ainda está me lendo, que eu sinto a sua falta. Das nossas palavras que nunca foram ditas. Lembra? A gente ria do Renato cantando isso – como se ele, poeta, não soubesse que as palavras que você ouve de quem ama nunca são repetidas. Que saudades de ouvir ‘eu te amo’ de você – e receber a frase como se fosse uma nova lição numa língua que você ainda está aprendendo. E estávamos aprendendo uma nova língua, não estávamos? Aprendíamos tudo, com a curiosidade de quem entra num jardim da infância. E com a mesma inocência. Eu fui a Joana mais feliz do mundo e sei que fiz de você o Breno idem. Há meses eu tento fingir para mim mesma que aquilo tudo não aconteceu – e confesso, com orgulho, meu fracasso. Eu penso em você todo dia Eno (ainda posso te chamar assim?). E é pior – muito pior do que eu imaginava. Patético eu estar te escrevendo essas coisas não é? Sabia que você iria achar isso…’

Enviar.

Engraçado como as mensagens de texto – que sempre foram do tamanho justo quando eles queriam se comunicar quando estavam juntos – agora pareciam estranhamente limitadoras. Queria escrever mais, mas tinha essa questão do espaço… Só que Joana sabia que isso era só uma desculpa.

Poderia escrever mais sim – abrir outra página no seu celular e continuar a descrever a falta que ela sentia do Breno. O que a impedia era um outro motivo: um medo absurdo de parecer ainda mais tola diante dele. Se Breno estivesse acordado agora – algo pouco provável, porque ainda não era nem meio-dia –, talvez ele já estivesse lendo sua mensagem. Se é que ele passou da segunda frase. Enquanto ela se sentia, não arrependida, mas precipitada por tê-lo procurado (e de maneira tão escancarada), talvez ele já estivesse lendo a pergunta sobre ‘aprender uma nova língua’. E quando finalmente ela começou a chorar, Breno provavelmente já teria chegado à palavra ‘patético’.

Dois tempos tão diferentes: o dele, o de uma leitura desconfiada, e o dela, de um mergulho no fundo da sua emoção – e, mesmo assim, os dois contidos nos 1.120 toques que a tela do seu aparelho era capaz de conter. A essa altura, aliás, era provável que ele estivesse lendo tudo de novo. Joana, porém, não estava a fim de repetir as sensações dos últimos 45 segundos (mais ou menos o tempo que ele levaria para chegar ao fim da mensagem). Melhor se distrair com outras coisas. Ela precisava descobrir o telefone daquele dermatologista – lembra, Joana? E ela tinha tanta coisa para fazer – coisas muito mais importantes do que esperar por uma resposta do Breno.

Que não veio.

Não veio naquele dia, não veio no dia seguinte, nem nos dias que faltavam para fechar o mês – mais precisamente os dias que ainda tiveram de ser vividos até que completasse um ano e meio da separação entre eles.

Joana se lembrou de uma mensagem que uma vez Breno havia mandado reclamando que não havia encontrado nenhum torpedo dela naquela manhã – e que ele não sabia então como conseguiria atravessar o dia… Ela já estava acordada em sua casa há tempos, e ficou imaginado Breno escrevendo aquilo atravessado na cama, não no sentido que as pessoas geralmente dormem, mas a exatos noventa graus disso – quantas não foram as noites em que ela acordou de madrugada para registrar a curiosa perpendicular que seus corpos faziam sobre o colchão, como que desafiando a idéia de que o abraço não precisa ser apenas entre dois corpos paralelos? (Mesmo dormindo – ou ‘durmindo’ – sozinho, Breno sempre rodava na cama longe do travesseiro, como se sua cabeça fosse atraída magneticamente para um outro ponto do planeta. Não foram poucas as manhãs em que ela, chegando cedo para fazer uma surpresa, o encontrava naquela posição assim que abria a porta do quarto, e docemente resistia à vontade de correr para o seu lado apenas para aproveitar por alguns minutos aquela visão). Por isso foi fácil imaginar Breno digitando aquela ‘reclamação’ – e, ciente de que o havia acostumado mal (afinal ela mandava sim uma mensagem todos os dias pela manhã), apressou-se em escrever uma desculpa emocionada:

‘Ainda não te escrevi, Breno, porque não sabia como te dizer isso… Eu te adoro Breno, mas tanto, tanto, tanto, que não tá cabendo mais no meu coração, meu amor. Não tá cabendo nem nos nossos dois corações juntos. Nem em todos os corações da Terra juntos. Porque é um amor tão lindo, tão grande, e tão infinito que ninguém ainda teve o privilégio de entender. É só nisso que você precisa acreditar para fazer aquelas duas palavras tão simples, mas que quando são ditas juntas – e ainda mais saindo dos teus lábios – significa o mundo pra mim: vamos juntos!’

Deu certo… Em menos de uma hora ele estava ligando da frente do trabalho de Joana pedindo que ela fosse almoçar com ele. E depois do almoço, claro, o amor.

Sua última mensagem, porém, aquela que havia mandado quase que por impulso assumindo que sentia muita a falta dele, não provocou nenhuma resposta. Depois de dezoito meses e um torpedo, o que ela tinha? Um coração ainda mais vazio – nas suas paredes, os ecos das canções de amor que nunca fizeram muito sentido para ela antes disso, mas que ultimamente finalmente cumpriam seu papel: preencher o vazio de um romance que acabou sem explicação (era por isso então que essas músicas faziam tanto sucesso, porque existiam milhares, milhões de pessoas que se sentiam como ela?).

Lembrou-se do envelope que nunca saía da sua bolsa. Achou-o dentro daquele micro labirinto quase junto com a caneta que eles haviam roubado do hotel onde se hospedaram na única viagem que fizeram juntos (Barcelona!). Apoiou o grosso volume de cartas e bilhetes que Breno havia escrito de próprio punho, riscou o que frase que estava ali antes – ‘As palavras que nunca são ditas’ – e com muita raiva escreveu: ‘Did you ever believe the lies that you told?’.

Será que ele um dia acreditou nas mentiras que contou para ela? A pergunta não era original. Joana a havia tirado de uma música (‘Fool’s gold’) que a ajudou atravessar os primeiros dias longe de Breno, cantada por Lhasa, uma artista que (ela tinha certeza), o próprio Renato Russo teria gostado de conhecer – e, quem sabe (gostava de pensar), agora que os dois já não estão aqui, não estão compondo juntos em um outro plano?

Que curioso… Num gesto breve, tinha transformado toda a saudade que sentia de Breno em raiva destilada. Sentia enfim vontade de ir até a casa dele e lhe atirar o envelope ‘rebatizado’ na cara. Nunca faria isso, claro. Mas pelo menos podia mandar outra mensagem de texto… E num impulso não menos apressado do que da última vez, abriu seu celular e teclou:

‘Eu nunca me senti assim Breno. Eu nunca tive de dizer isso pra ninguém. Mas eu ainda preciso de você. Eu preciso saber o quanto você gosta de mim, eu preciso de coisas bobas assim. Faz tanto tempo Breno, e ao mesmo tempo não faz tanto tempo assim. Eu nem sei mais o que é tempo, pois os únicos minutos que eu contava eram aqueles que eu passava com você. Aqueles em que eu te abraçava e sua cabeça caía para o meu ombro, num contato tão precioso que nem um beijo – que era a coisa que eu sempre mais queria de você – eu tinha coragem de te dar, para não quebrar aquele encanto. Ironicamente eu achava que em momentos como aqueles, o relógio tinha é parado – mas não… Eram essas as frações do tempo que realmente definiam minha vida. E é disso que eu sinto falta agora, Eno. É disso que eu sinto falta.’

Nenhuma resposta.

O que Joana tinha a perder se continuasse mandando mensagens? Levou dois dias para ela chegar à conclusão de que não perderia nada – e que nem que fosse uma espécie de estratégia desesperada de sobrevivência, se ela seguisse exercitando seu amor, ainda que de um lado só, isso a ajudaria a atravessar os dias até que – como Breno disse a ela na última conversa – chegasse o momento em que ela fosse rir disso tudo (e que raiva ela sentiu de ter que se despedir dele com um clichê desses…). Assim, mandou mais um torpedo – já era o terceiro:

‘Eu não paro de pensar em maneiras de te fazer feliz. Você sabe como. Você já acordou do meu lado e leu nos meus olhos a promessa de ser sua parceira até o infinito. Eu só posso ser feliz assim.’

E três dias depois, ainda sem resposta, foi sem um mínimo de hesitação que mandou mais uma mensagem:

‘Se eu pudesse ter só mais uma conversa com você, se você pudesse me convencer que não gosta mais de mim. Se eu tivesse a chance de ver seu sorriso mais uma vez, de brigar mais uma vez com o meu sono para não tirar a lucidez da minha felicidade de estar deitada ao lado do cara que mudou minha vida, de ouvir mais uma vez você responder à pergunta QUEM É O AMOR DA MINHA VIDA? com um simples SOU EU… Se eu pudesse te entender, se eu pudesse te esquecer, se você pudesse me abraçar…’

Enviar.

Joana já conhecia a rotina: mandar a mensagem, torcer sem convicção para que viesse uma resposta, não obter essa resposta e aos poucos ir retomando seu cotidiano até ter inspiração para escrever mais um torpedo. Só que dessa vez a rotina foi quebrada, quando dali a menos de cinco minutos chegou uma sinal – o nome BRENO piscando na sua tela como se fosse um registro vital de um eletrocardiograma. Finalmente ele tinha alguma coisa para dizer para Joana – que resolveu se poupar da indecisão sobre se deveria abrir ou não a mensagem naquele exato momento: claro que deveria abrir. E ler:

‘Joana, esse não é mais o número do Breno. Aliás, nem sei quem é Breno – só sei que peguei esse telefone no começo deste ano. E sei também que li todas as mensagens que você mandou. Várias vezes. E conclui que é impossível não se apaixonar por você. Que esse Breno – coitado… Mas eu não quero falar dele. Quero falar de mim, que inevitavelmente me apaixonei pela mulher que escreveu essas palavras que – pegando outra carona no Renato (é o Russo, não é?) –, pelo menos para mim, nunca haviam sido ditas. E o que eu faço agora com essa paixão? Não quer me ligar para me ajudar a encontrar uma resposta? Um beijo. Leila’.”




Texto do Zeca Camargo, indicado pela Aline.

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